Esperança na justiça

Existem dias em que chego a questionar a minha opção pelo direito, dias em que verificamos funcionários do poder judiciário simplesmente dando as costas para suas funções, juízes que simplesmente não conhecem os processo que julgam, ou pior às vezes até conhecem, mas vão julgando tudo conforme suas convicções pessoais rasgando a lei e a democracia e é claro advogados cheios de má-fé não só com a outra parte, mas até mesmo com o seus próprios clientes.

Mas existem dias também no qual sei do fundo do meu coração que estou fazendo a coisa certa, que este é meu espaço no mundo, que devo continuar, pois não sou o único bem intencionado, pois bem, no dia de hoje tive a felicidade de abrir o site Espaço Vital e encontrar o texto que segue, o qual mais do que um voto de um relator em um processo é uma história de vida e uma lição para todos nós operadores de direito do que significa humanidade e justiça.

Obrigado desembargador Palma Bisson. Ler o seu texto me tira da solidão e me inspira.

Obrigado desembargador, pois hoje vou dormir com mais esperança na justiça brasileira. 

 

Excerto do acórdão nº 1001412, da 36ª Câmara Cível do TJ-SP

"Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia.

Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar.
 
Fez caber a mim, com efeito - filho de marceneiro como você - a missão de reavaliar a sua fortuna.
 
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador – legada, olha-me agora.
 
é uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas pela repetido.
 
é uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro – que nem existe mais – num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
 
Desde esse dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos.
 
São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
 
O seu pai, menino, desses marceneiros era.
 
Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
 
E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
 
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer.
 
Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome como saciada dos pobres.
 
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular.
 
O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico.
 
Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d´água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
 
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados do pobres para defendê-los?
 
Quiçá no livro grosso dos preconceitos ...
 
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
 
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
 
é como marceneiro voto".
 
Palma Bisson, relator sorteado."

 

Por fim caros leitores gostaria de fazer um pequenas reflexão com base no voto do desembargador:

Pelo texto se verifica que o juiz de primeiro grau tinha simplesmente indeferido a Assistência judiciária gratuita, ou porque o menino não tinha juntado um comprovante de renda, ou porque ele estava com um advogado que não era da defensoria pública, de forma que o magistrado  entendeu que os documentos que estavam no processo não provavam nada e assim não seria cabível a AJG.

Pois bem aqui se verifica quão importante é que o magistrado seja uma pessoa vivida e não um jovem recém formado, pois mais do que conhecimento técnico é o conhecimento de vida do magistrado que pode lhe dar visão para ler nas entrelinhas  (veja os exemplos no texto):

- "os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos"

- "Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante."

- "descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante."

- "o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer."

- "Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada."

 

Outro enfoque interessante sobre o fato é, o julgador olhou a causa com amor, com carinho, não só porque é competente, mas também porque ele - filho de marceneiro - se identificou - com o autor - filho de marceneiro.

"Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito - filho de marceneiro como você - a missão de reavaliar a sua fortuna."

Esta situação deixa claro aquilo que é evidente e sinal de humanidade - é impossível ao magistrado não aplicar as próprias experiências em julgamentos. Assim é lógico que se um magistrado teve uma vida difícil ele terá mais facilidade de entender uma pessoa naquela situação do que alguém que só estudou em colégios particulares, só possuía amigos ricos, nunca entrou em uma vila e saiu da universidade para a magistratura sem nunca ter trabalhado e ganhado pouco.

"...trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele"

Mais do que isto como é importante ao magistrado ter um conhecimento mais amplo das carreiras jurídicas e de seu funcionamento

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d´água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

É por isto caros leitores que defendo a idade mínima de 30 anos para o ingresso na magistratura (talvez o ideal fosse 40), pois isto obrigaria que todos magistrados tivessem antes da magistratura outras experiências de vida e inclusive profissionais para que assim pudessem entender melhor o mundo que estão a julgar.

 

Abraço a todos,

 

Gabriel Rodrigues Garcia, advogado

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