Violência Urbana: Os meninos e os tênis...
Entrei numa lotação e no fundo estavam cinco meninos de idade variada entre 11 a 17 anos. Riam muito. Sentei próxima, acabei me detendo na conversa e percebi que passavam de um a outro um pé de tênis. O pé serviu no menor e eles vibraram com o gurizinho que tinha se dado bem e saído com um tênis novo: \\\"te deu teu...novinho!\\\" Um arrepio me percorreu a espinha e eu entrei numa percepção medonha do mundo. Eles tinham roubado o tênis. E dali há pouco poderiam assaltar também a lotação, porquê não? No grau de excitação em que estavam deviam estar se sentindo poderosos. Dali há pouco o caos e o medo...
E eu rezei...
Nem tanto por medo, mas por uma imensa incompreensão e dor por tudo isto. Pelos meninos que eram só meninos felizes com um tênis, meninos que desejam um tênis, talvez muito menos por terem com o que vestir os seus pés, mas para possuirem um símbolo, ou uma chave, capaz de os incluir no mundo que lhes pregam diariamente como real.
Os meninos desejavam somente um tênis. E eu lembrei de adolescentes com os quais eu convivo que ganham três, cinco, dez pares de tênis anuais que podem custar verdadeiras fortunas - aí imaginei que fora de um destes que aquele par fora tomado e, naquele momento, em um outro canto qualquer da cidade, uma mãe bradava por impunidade, pelo trauma do filho que viu o canivete, o revólver, sentiu o medo, tomou um soco e teve que voltar para casa descalço (mas ela lhe buscou no colégio e lhe prometeu o quarto tênis novo do ano e tudo iria ficar bem, mesmo que intimamente ela soubesse que nada iria ficar bem enquanto todos os bandidos não estivessem jogados num porão frio, úmido e infecto... E ela nunca seria capaz de perceber o excesso que apodrece. E assim cada vez mais e mais meninos apodrecerão em porões úmidos, frios e infectos. Deus fez brotar pães no deserto para salvar o povo de israel da fome. mas cada um deveria pegar somente o seu, qualquer excedente apodreceria...
O nosso mundo tá podre...
Tem muita gente pegando muito pão, muito mais do que pode comer. E não adianta depois reclamar do cheiro de podridão. Ela se espalha por tudo, apodrece nossos dias, nossas almas, nossos corpos, nossas vidas.
Autora: Fernanda Rodrigues Garcia